Autobiografia por Maria Alberta Menéres - Jornal de Letras 2006
"Prometi, é verdade. Prometi escrever aqui para o Jornal de Letras a minha Autobiografia. Foi um convite que muito me sensibilizou e mesmo entusiasmou. Mas logo a seguir me afligiu. E depois me apavorou. Telefonei então - tarde e a más horas, reconheço, só para dizer que não ia corresponder a tal convite, porque de repente reparei que havia peripécias da minha vida, tão incríveis que ninguém ia acreditar que fossem reais! Não consegui provar que esta fosse uma grande razão para desistir, e por isso aqui estou, incautamente contando algumas verdades da minha vida.
- Nasci no dia 25 de Agosto de' 1930, em Vila Nova de Gaia. Naquele tempo, era muito habitual nascer em casa, com assistência de um médico de família. Lembro-me perfeitamente de nascer. Lembro-me de ter sido o meu pai quem me recebeu nos seus braços e me levou para um sofá amarelo que estava ali no quarto deles. Primeiro, fiquei sossegada, mas de repente comecei a espernear e ouvi claramente a minha mãe dar um grande grito: «Ai, a menina!». O meu pai correu e conseguiu apanhar-me já no ar, entre o sofá e o chão. - Durante largos anos, aquela sensação de cair, desse dia, fez com que, volta não volta, eu passasse a acordar de noite e sempre à mesma hora do meu nascimento, arrepiada pelo meu próprio grito. Um dia, esse grito acabou, sem qualquer razão. Mas não acabou na minha memória, todo o tempo que vivo (a cores, e com o entendimento de uma especial situação). Sempre pensei que este fosse um caso único no mundo, mas um dia li numa revista médica cujo nome não guardei, que há mais casos destes no mundo, embora sejam muitíssimo raros. Entretanto, nasceram as minhas duas irmãs mais novas, mais «normais» ...
- Quando eu tinha seis anos, morreu o meu avô Materno, Artur Rovisco, que era médico e veterinário, e que andava a cavalo, pelos campos, a curar pessoas e animais. Primo (como irmão) de Rovisco Pais, era um avô encantador, casado com a minha avó Adelina. Por morte desse meu avô, que deixou duas herdades ribatejanas à minha mãe, saímos definitivamente de Vila Nova de Gaia e fomos viver lá para o campo, onde fiz a primeira e ingénua aprendizagem do que é viver longe de qualquer civilização, à distância de dez quilómetros da 'aldeia que ficava mais perto! Foi um tempo maravilhoso e inesquecível, em que aprendi a trepar às árvores num instantinho, a visitar as tocas das raposas e a ser amiga dos seus filhotes; a ajudar as galinhas a fugir dos milhafres, e os patos a não serem tão patarecos ... ; e a andar a cavalo sem sela, só agarrada às suas crinas; e a perder-me de propósito ... o que passou a ser a grande aflição dos meus pais e de todos os trabalhadores de lá… Mas eu adorava perder-me por aquelas solidões todas, até que um dia, sob uma violenta trovoada, e já sem perceber o caminho para casa, encontrei um velho camponês que me disse: - «A menina deixe o cavalo ir para onde ele quiser, que ele é que sabe o caminho para a cocheira dele! Largue-lhe as rédeas!» E assim foi. Quando cheguei a casa, estava tudo em pânico por não me encontrarem em lado nenhum, e por saberem que os cavalos não gostam lá muito de trovoadas! Aprendi a ir buscar água à Fonte dos Marmeleiros, em cântaros enfiados nas cangalhas que iam em cima dos burros; a fugir dos enxames de abelhas; a não ter medo dos relâmpagos e dos trovões - enfim, a saber fazer parte da natureza em toda a sua força e esplendor. E lia, lia muito. Lia tudo o que apanhava à mão. E comecei a escrever - à minha moda.
Esta primeira aprendizagem de um tempo de liberdade e de descoberta, foi o grande primeiro impulso da minha vontade de ser escritora. Entretanto, o meu avô paterno enviava-me, de Vila Nova de Gaia, livros fantásticos como por exemplo, todos os Clássicos da Sá da Costa, entre os quais a Ilíada e a Odisseia! E também me enviava livros do Brasil, onde tinham casado a sua mãe e o seu pai e meu bisavô Clemente Menéres, antes de este ter comprado as terras transmontanas do Romeu. Desses livros todos, destaco alguns de Monteiro Lobato e a célebre colecção de uma revista mensal para jovens, chamada O Tico Tico, de que ainda hoje conservo todos os números, religiosamente! Mas ali, no meio do campo ribatejano, não havia ninguém que nos desse uma normal instrução, e então os meus pais levaram-nos, primeiro a mim e, nos anos seguintes, as minhas irmãs, para um Colégio interno, em Lisboa - primeiro, um de Franciscanas Missionárias, e depois para outro que era das Irmãs Doroteias no qual, como ninguém me vencia nos saltos em altura, inventei que voava e, para não me esquecer, «programei» o espectáculo dos meus voos para as quintas-feiras, às cinco horas da tarde! Foi um horror, porque todas as quintas-feiras, às cinco horas da tarde, eu tinha de me esconder, para, logo que passassem uns minutos, aparecer e fingir que estava muito desolada por já ter passado o tempo dos meus voos! E isto durou uns dois anos ...
Só que um dia de festa grande lá no Colégio, aconteceu que era uma quinta-feira e era quase cinco horas, estando o Colégio todo reunido num grande Salão. Não me consegui escapar!!! Toda a gente gritava para eu voar, e então, muito afoita, trepei para o alto de um enorme quadro de mogno que ali estava e, em frente de todo o Colégio, lancei-me no espaço, a voar! A minha ideia era que, com o impulso que dei, firmando o pé na parede que tinha atrás de mim, e fazendo-me muito levezinha, conseguisse chegar ao fundo do Salão ... mas o pior é que, mal me lancei no ar, fez-se ouvir a estridente campainha das cinco horas do Colégio, e eu só tive tempo de gritar «diabo de campainha!!!» e, levemente aterrei no chão de mármore encerado. Senti logo que tinha partido um pé, mas não dei parte de fraca ... Houve um grito geral: «Ela já estava a voar! Ela estava a voar!!! Se não fosse a campainha, tinha dado a volta à sala! !!» Eu sorria, e não disse nada que tinha magoado um pé, que afinal estava mesmo partido. Estive quase um mês na enfermaria do Colégio, onde recebi muitas visitas sempre e me fartei de dar autógrafos ... E difícil de acreditar, mas ainda hoje, lá de vez em quando, encontro pessoas que não conheço e ouviram falar das minhas aventuras, e me perguntam: «Você é a Alberta que voa?!» É claro que digo logo que sim, e tudo acaba numa grande e cúmplice risota!!!
Foi desta e de muitas outras aventuras assim loucas que se fez a minha infância. E motivos para escrever para os mais novos, principalmente, nunca mais acabam. Até porque eu acredito, ao fim e ao cabo, que «todas as coisas têm uma história para contar». Agora, assim de repente, é que reparo que me esqueci de dizer como foi que comecei a entender mais claramente que gostava de ser escritora! Tinha começado o tempo das férias de Verão e eu estava quase a fazer 10 anos. Nunca ninguém deve ter entrado na praia de Vila do Conde, como eu entrei: de Dicionário debaixo do braço, toda contente! Era uma paixão bem recente: Que maravilha existir um livro que explicasse o que queriam dizer todas as palavras do mundo!» (pensava eu). Assim, já poderia ser escritora! E logo que eu e a família nos instalámos na barraca de praia onde íamos passar a manhã, eu sentei-me lá na frente, junto ao mar, e «sentei» também o Dicionário ao meu lado, em cima da toalha de praia. Pedi à minha mãe que me desse um caderninho que ela trazia muitas vezes com ela, e um lápis. Pronto! Já podia ser escritora. E, a escolher e a escrever uma palavra aqui e outra além, com os sentidos que de repente me apareciam mesmo mágicos, escrevi a primeira quadra da minha vida, que era assim: “Num sibilar longínquo o mar rugia a chorar: é que um segredo iníquo o fazia meditar!" E fiquei fascinada: que bonita! Não sabia nada o que queriam dizer, estas palavras, mas era muito bonito o que tinha escrito! ... (pensava eu) Agora, reparando bem: um sibilar é sempre baixinho, secreto, nunca pode ser longínquo ... E o mar, como seria rugir a chorar, se até estava tão mansinho naquele dia?! E o que seria um segredo iníquo, que eu nem sabia bem o que queria dizer, mas certamente não era coisa que permitisse muitas meditações ... Eu queria lá saber destas impossibilidades! Só pensava que era tão bom poder escrever assim coisas tão misteriosas e tão belas! (E não me calava, com esta descoberta.) Nunca mais parei de escrever. Já sem a necessidade de consultar o Dicionário - mas sempre admirada pela nossa capacidade humana de admirar e de sentir. De momento, continuo a andar de Escola em Escola, e de Câmara Municipal em Câmara Municipal, conversando com os professores e os alunos e levando a todos a minha ideia de que é bom viver num mundo que está cheio de histórias contadas e por contar, e que as podemos descobrir ao longo de toda a nossa vida - sempre diferentes, conforme os olhos que as vêem e o coração que as sente. Não há receitas para estas descobertas, mas apenas estratégias sensíveis que, se nós as quisermos descobrir, veremos como poderão dar mais sentido e beleza à nossa vida de todos os dias."
Maria Alberta Menéres, Jornal de Letras 2006